Por Isabella Vilela
No ano passado, o longa sobre o Maníaco do Parque e o documentário que reconta a história do caso ocuparam o topo do ranking de visualizações da Prime Video, mostrando o interesse do público por narrativas que conectam crimes reais e temas sociais sensíveis. Dentro desse contexto, Olivia Lopes, atriz que interpretou Tainá no filme, se destacou por dar vida a uma personagem central na investigação que levou à prisão de Francisco de Assis Pereira.
A participação de Olivia é importante, pois Tainá é retratada como ponto de virada na trama, além de ser uma das poucas figuras reais no longa. A atriz, que relembra o impacto do caso na mídia dos anos 1990, ressalta o desafio de construir uma personagem histórica com base em registros limitados. “Dar visibilidade à Tainá é reconhecer sua importância no desenrolar dos fatos”, afirma.
Em entrevista, Olivia também reflete sobre os desafios da comunidade trans e travesti no audiovisual e a necessidade de abrir novos espaços na indústria. A atriz compartilha sua jornada profissional, discute questões sobre representatividade e revela sonhos futuros. Confira!
Cine Ninja: No filme “Maníaco do Parque”, você interpreta a Tainá, namorada do Francisco, interpretado pelo Silverio Pereira, mas sem contracenar diretamente com ele. Queria que você contasse um pouco mais pra gente como foi essa experiência nas gravações, como foi construir essa personagem em uma cena isolada e qual foi o maior desafio para transmitir sua narrativa.
Olivia Lopes: Olha, a Tainá, tirando o Francisco, é a única personagem que de fato existiu, né? As demais são baseadas em fatos reais. Para mim, que nasci em 1992 e tenho 32 anos, lembro de quando o Francisco foi preso, quando o caso estourou na mídia. Lembro da narrativa da Tainá passando na TV, embora não me recorde de qual programa específico. Essa história aparecia em reportagens e colocavam em xeque a sexualidade do Francisco, relacionando isso ao fato de ele se envolver com uma travesti. Apesar disso, ele também se relacionava com mulheres, e justificavam as agressões e até os assassinatos que ele cometia por uma possível homoafetividade. Mas o filme mostra que essa não era a questão.
Para fazer a Tainá, pesquisei registros disponíveis. Apesar de ela ser importante na narrativa, há pouca visibilidade sobre o que ela disse. Uma coisa que o filme faz bem é trazer visibilidade para ela, já que, na vida real, sua participação foi minimizada, apesar de ela ter sido crucial na investigação.
Foi um prazer interpretá-la. Foi um desafio porque é meu segundo longa, o primeiro foi Brenda em O Palácio das Princesas. Interpretar uma personagem que é um ponto de virada na narrativa, mesmo em apenas uma cena, ao lado de pessoas com mais bagagem foi um privilégio. Estou muito animada com o resultado do filme, que me deixa feliz. Acho que é um ganho tanto para mim quanto para a visibilidade de pessoas trans.
Cine Ninja: A história do filme envolve temas pesados e sensíveis. Como você, enquanto atriz, se preparou para lidar com essas questões e como isso afetou sua percepção sobre o papel da arte em retratar realidades tão sombrias?
Olivia Lopes: O caso já era conhecido. O que o filme faz não é apenas dar mais notoriedade, mas propor uma narrativa. Isso se conecta com o que falamos da Tainá: dar voz às mulheres vítimas. Essas narrativas são muito importantes, e o filme faz isso bem. Nele, uma mulher descobre tudo. A principal investigadora do caso foi uma mulher, o que traz uma nova perspectiva. O gênero de true crime cresceu bastante nos últimos tempos, e acredito que isso é uma demanda popular. As pessoas se interessam por histórias assim, mas acho que o filme aborda essas questões sensíveis de forma inteligente, o que é incrível.
Cine Ninja: O que a motivou a seguir na atuação?
Olivia Lopes: Para mim, o teatro e a atuação foram formas de melhorar minha comunicação com o mundo. Aquilo que é difícil de dizer por meio de um texto ou conversa pode ser comunicado muito bem em uma cena. O teatro trata de questões universais de forma mais pessoal. Isso cria conexões entre as pessoas e meu trabalho. O teatro veio como essa possibilidade de falar o que é difícil dizer só com palavras.
Cine Ninja: Falando um pouco mais sobre os seus projetos, junto com o cineasta Guilherme Gila, você dirigiu e atuou na releitura de “Geni e o Zepelim”, que é um projeto ousado e importante. Queria que você contasse um pouco mais sobre esse projeto, o que te motivou a escolher essa canção e como foi o processo de adaptar uma obra tão emblemática de Chico Buarque para uma versão mais contemporânea?
Olivia Lopes: Eu acho que Geni é uma personagem que fala muito às travestis e às pessoas trans, e sinto que falta esse reconhecimento e espaço dessa personagem para essas pessoas. Nossa sociedade encara a Geni como uma prostituta, uma garota de programa, o que é evidente na letra, mas talvez não seja tão evidente que ela era uma pessoa trans. Geni fala exatamente sobre uma personagem que levava uma vida dupla: era ajudante no cais, no porto, durante o dia, mas trabalhava no cabaré à noite. O que, anos atrás, seria entendido como uma pessoa transformista, hoje também entendemos como uma estratégia de sobrevivência para pessoas trans.
Então, lá no passado, quando se dizia que alguém era transformista, isso nada mais era do que uma forma de sobrevivência. Nos anos 60, 70, 80, 90, era mais fácil dizer “sou transformista” do que afirmar “sou uma pessoa trans, sou travesti”. Desde o final dos anos 90, existe o entendimento de que travesti não é uma ação, mas sim uma identidade. É por isso que me identifico. Quando entendo a Geni, penso: “Essa personagem me pertence”. Isso despertou em mim o desejo de fazer essa releitura, de trazer a Geni para o nosso dia a dia. Na narrativa original, ela está nos anos 40, se não me engano, o que parece mais distante, mas quis aproximar a Geni do cotidiano, porque as Genis estão por aí o tempo todo. Às vezes só não sabemos reconhecê-las.
Foi disso que veio a vontade. O Gila é um grande amigo meu há alguns anos. Ele é músico, diretor de teatro, dramaturgo e um multiartista. Foi um prazer fazer esse projeto com ele e a ideia partiu dele. Ele me disse: “Alice, e se a gente fizesse?”. Eu falei: “Cara, vamos fazer”. Ele respondeu: “Mas não tem como fazer isso sem uma pessoa trans”. E eu concordei: “Você tem razão”. Então fizemos juntos, e foi muito bom.
Cine Ninja: A representação e a representatividade trans e travestis no cinema e na música ainda possui uma caminhada longa. Eu queria saber de você, como multiartista, em uma indústria ainda marcada por preconceitos e falta de oportunidades, o que você acha que pode ser feito para tornar o ambiente artístico mais inclusivo e acolhedor para esses artistas?
Olivia Lopes: Olha, eu acho que é um passo de cada vez, né? Leva tempo até todo mundo entender que é trabalho. Não sei se é a melhor maneira de dizer isso, mas não é um favor. Dar trabalho a quem merece é uma troca, né? E acho que crescemos muito como sociedade e nas produções artísticas quando damos oportunidades a quem de fato merece. Visibilizar corpos que antes não estavam nos holofotes faz parte de uma dívida histórica que temos.
Acho que precisamos entender que essas pessoas têm seu lugar, merecem ocupá-lo e, além disso, ocupar outros espaços que talvez não tenham sido pensados para elas. Quando, lá em 2017, começaram a questionar por que pessoas cis interpretavam pessoas trans, é um pouco sobre isso.
Recebi pouquíssimas oportunidades na vida de interpretar personagens cis, por exemplo, e isso diz algo: sobre o público, os produtores de elenco, os diretores. Por que não posso interpretar uma mulher cis, mas uma mulher cis pode me interpretar? Por que um homem cis poderia me interpretar se eu não posso interpretar uma pessoa cis?
Acho que todos esses questionamentos valem a pena ser considerados. Também acho que precisamos ampliar nossa visão. Não me vejo interpretando apenas pessoas trans para o resto da vida. Acho que já avançamos muito, e isso é maravilhoso. Sou muito feliz pelas oportunidades que recebi, mas acredito que podemos expandir nosso olhar e perceber que existe a possibilidade de ampliar as oportunidades para todas as pessoas.
Cine Ninja: Quais são seus sonhos e ambições para o futuro na sua carreira artística? Você tem algum projeto ou papel específico que gostaria muito de interpretar?
Olivia Lopes: Tenho dois papéis que sonho em interpretar, ambos de pessoas trans. São papéis com os quais me identificava antes mesmo de entender que eu era uma pessoa trans, pelo menos um deles. O outro eu conheci no início da minha transição, então, talvez as pessoas não soubessem ainda, mas eu já tinha começado.
O primeiro papel é Ângela, no musical Rent. Se um dia eu tiver a oportunidade, vou agarrar com unhas e dentes, seja no audiovisual ou no teatro. Será um grande sonho realizado. O segundo papel é mais recente, uma vontade que surgiu há uns dois anos: interpretar Gisberta, da música Balada de Gisberta. Fiz um cover dessa música, mas sem clipe. Gisberta foi uma travesti assassinada em Portugal, e sua história mudou os direitos e leis em favor das pessoas trans. Para mim, seria maravilhoso dar vida a essa personagem.
Já tive a oportunidade de interpretar outras pessoas trans. Fiz uma dublê de uma personagem pequena em uma série que ainda vai sair. Acho que meu futuro na atuação depende muito da minha vontade de me autoproduzir.
Atualmente, estou dando uma oficina de teatro para pessoas trans, que será minha primeira experiência como diretora. Vou dirigir minha primeira peça neste semestre. Além disso, Geni foi outra produção minha. Minha carreira deve seguir por esse caminho: um equilíbrio entre o que eu consigo autoproduzir e as oportunidades que espero ainda receber, com muita felicidade.
Cine Ninja: Qual conselho você daria para jovens artistas trans e travestis que sonham em seguir carreira nas artes, seja na atuação, música ou qualquer outra forma de expressão artística?
Olivia Lopes: A primeira coisa é conquistar independência financeira, especialmente se não houver apoio familiar. Foi o primeiro passo que precisei alcançar antes de conseguir fazer minha transição. A partir disso, podemos pensar em como inserir uma pessoa nos estudos.
Procure faculdades públicas. Eu já passei em duas faculdades públicas em teatro, então é possível, sim. Dá para fazer isso acontecer. Existem opções como a SP Escola de Teatro e a Escola de Arte Dramática da USP, onde estou atualmente. Já era formada, mas quis fazer o curso da USP. Além disso, tem o Centro de Artes Cênicas da USP. Isso é para quem deseja seguir no teatro, mas se o interesse for outro, como matemática, filosofia ou moda, o conselho continua o mesmo: comece conquistando sua independência financeira e procure faculdades públicas.
Tente entrar pelo Sisu, se você estudou em escola pública. Use sua nota do Enem para acessar vagas em universidades públicas ou particulares. Existem possibilidades, mas, às vezes, falta informação. Não deixe de estudar. Mesmo que o sonho seja empreender, uma base educacional fará diferença na sua vida.
Quando for possível, após alcançar a independência financeira e se dedicar aos estudos, procure testes, conecte-se com pessoas, comece a construir seu networking e lembre-se de que é um passo de cada vez.
Existem pessoas que já passaram por isso. Eu também passei. Meu caso não é absoluto, não falo por toda a comunidade, apenas por mim. Mas o que posso dizer é: tudo que eu puder fazer para ajudar, farei. Se quiser mandar uma mensagem ou pedir ajuda, estarei disponível. Além disso, procure entidades que ofereçam suporte, como acolhimento para pessoas LGBTQIA+ que foram expulsas de casa ou estão sem apoio familiar. Há atendimentos pelo SUS, como acompanhamento psicológico e serviços de humanização. Essas possibilidades existem, ainda que sejam escassas. Não desista. Busque informação e pessoas dispostas a ajudar, porque sempre haverá quem possa te apoiar no caminho.
Publicado em: 2025-01-29 12:53:00 | Autor: <span>Cine NINJA</span> |