Se o fetiche máximo do homem branco já um tanto entrado em anos é correr uma maratona, correr a de Boston, que acontece na próxima segunda-feira (21), é o fetiche máximo elevado à última potência.
Boston, afinal, é a mais longeva das maratonas, realizada escrupulosamente desde 1897. A única exceção se deu em 2020, por conta da Covid-19, mas houve uma versão “virtual”. A antiguidade da coisa é tal que o evento precisou de duas décadas para ver consolidada sua distância oficial de 42 km e infernais 195 metros.
Tradição pesa, mas não é o principal critério de excelência. Boston exige um comprovante de elegibilidade: ter concluído uma maratona pregressa em tempo mínimo determinado de acordo com gênero e faixa etária.
Espeto: pessoas que já de há muito dobraram o Cabo das Tormentas, como este colunista, 58 anos no lombo, precisam registrar até 3h35min, o que, convenhamos, é para poucos; mas é realmente para bem poucos o tempo exigido da tigrada dos 40-44 anos: 3h10min. Para mulheres, o tempo de corte é menos espartano.
Participar da prova de Boston, e concluí-la, portanto, muda o status do camarada. Tudo é vaidade, já ensina o Eclesiastes, mas poucos sujeitos são mais vaidosos que o maratonista.
Pode-se dizer que a quintessência da humildade é voltar de Boston sem cacarejar o próprio feito. Um hipotético corredor que assim procedesse estaria logo abaixo de dom Helder na escala beatífica.
O mineiro Nilson Lima, 72 anos, 13ª participação em Boston nesta segunda, talvez seja esse sujeito. Afinal, o cara se aproxima da maratona 400, a ser corrida em maio em sua cidade natal, Uberlândia. A prova mineira é chamada, a propósito, de Maratona Nilson Lima, e a prerrogativa de ter o próprio nome a batizar uma competição de 42 km jamais foi concedida a qualquer outro brasileiro.
O que quero dizer: dá para o Nilsão relativizar Boston.
O que ele não relativizou foi o clima de intimidação e desconfiança que assola os Estados Unidos sob Trump II. “A apreensão já começa no aeroporto. Venho para os Estados Unidos desde 2004, e desta vez fiz questão de trazer todos os passaportes antigos para não correr risco”, disse-me Nilsão.
“Quase três horas na fila de migração, perdi minha conexão Nova York-Boston. Nunca vi igual.”
Ao menos ele não teve problema com o agente de imigração, mas na cidade de Worcester, na periferia de Boston, em que está, relata o que viu e ouviu: “Alguns brasileiros que tinham empregos informais os abandonaram e esperam em casa a tempestade passar”.
O problema é que, consequência clássica dos regimes de exceção, o arbítrio foi capilarizado, e o homem de uniforme ganhou poder. Meu colega de Folha Conrado Hübner cantou a pedra em sua última coluna. “Desde que a Casa Branca publicou a ordem ‘Protegendo o povo americano contra invasão’, o guarda da esquina entrou em estado de gozo permanente. Os agentes de aplicação física da lei sentem-se empoderados pelo autocrata”, escreveu.
Se todo maratonista tinha em tempos mais cordiais uma razão para considerar Boston o ponto máximo de sua carreira, agora a coisa tomou ares de epopeia. Não ser retido no aeroporto e chegar ao pórtico de largada em Hopkinton parecem ser missões bem mais cascudas do que percorrer o sobe-e-desce dos 42 km da prova.
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Publicado em: 2025-04-17 18:20:00 | Autor: |