A guerra do governo Donald Trump contra os imigrantes atinge frontalmente parte dos 2 milhões de brasileiros que vivem nos Estados Unidos, dos quais cerca de 230 mil estariam na ilegalidade. São estimativas, mas que a pesquisadora Fabiana Santos, editora-chefe de português na International Journalist’s Network (IJNet) e mestre em Relações Interculturais, conhece bem.
No estudo “Mães Migrantes Brasileiras não Documentadas nos EUA: Impactos na Integração, Qualidade de vida e Saúde Mental”, ela analisou a situação de 12 mulheres, em situação não legal no país, suas vidas e perspectivas. Em comum, apesar das dificuldades, recusam-se a voltar para o Brasil, mas afirmam que o “sonho americano” é uma ilusão.
O Correio conversou com a pesquisadora e teve acesso ao estudo, de 167 páginas, em que Fabiana detalha as entrevistas com as 12 mães, de 25 a 54 anos, que moram em diferentes cidades dos Estados Unidos. Uma em especial marcou bastante, segundo ela.
“Nós somos presos numa ‘gaiola de ouro’ que a gente não pode sair”, contou a cientista, reproduzindo a frase que ainda ecoa. “Além da questão financeira, um outro aspecto que afeta a permanência nos Estados Unidos é a maternidade. E elas afirmam que ficam no país ‘por causa dos filhos’ e que jamais os abandonariam porque não têm de fazê-los viver no Brasil, longe da cultura que estão acostumados.”
A pesquisa foi defendida em 2021, na Universidade Aberta de Portugal, mas, para Fabiana, as expectativas dos brasileiros, sobretudo das mulheres, de lá para cá pouco mudaram. De acordo com ela, muitas trabalham em serviços gerais, alegam que ganham bem, mas descansam pouco. Uma realidade comum à grande parte dos imigrantes. “Os imigrantes nos Estados Unidos, principalmente os que estão em condição de ilegalidade, representam uma força de trabalho para determinados serviços que o cidadão norte-americano não está disposto a desempenhar ou não demonstra interesse”, observou a pesquisadora.
Situação paradoxal
Para Fabiana, o termo correto é “migrante documentado” e “migrante não documentado”. Segundo ela, essa distinção é necessária porque, embora muitos estejam em situação de ilegalidade, são obrigados a cumprir com obrigações econômicas e financeiras. Exatamente o que verificou com as 12 mães brasileiras que acompanhou durante a pesquisa.
“O paradoxo entre o lícito e o ilícito não é simples de ser entendido. Um imigrante ilegal não é cidadão, mas se dispõe a pagar impostos justamente provenientes do trabalho que oficialmente ele não tem direito a exercer”, ressaltou. Ela lembrou que entre as taxas públicas cobradas dos “não documentados” está o ITIN (Individual Taxpayer Identification Number). “Há uma esperança de que isso os beneficie no processo de obtenção de cidadania.”
Nos Estados Unidos, de acordo com Fabiana, há uma carteira de motorista específica para os imigrantes “não documentados”, o que ratifica o paradoxo da realidade norte-americana. “Eles se tornam, assim, detentores de um documento emitido por uma autoridade norte-americana”, disse. “Os depoimentos confirmam que há uma manutenção da imigração ilegal por parte da própria autoridade governamental. Isso não é recente. (A impressão é que) sempre existiu uma tolerância para que os imigrantes não regularizados construíssem suas vidas em solo norte-americano.”
Feridas abertas
Ao conversar com as brasileiras, Fabiana disse que todos os relatos são marcados por dor e sofrimento, as queixas de discriminação e preconceito são frequentes também. Segundo ela, a situação se agrava em casos em que a pessoa entrou nos Estados Unidos via fronteira com o México – aquela que há o chamado “Deserto da Morte” que reúne as áreas de Sonora, em Chihuahua. Foi o caso de “Renata”, de 40 anos, divorciada, mãe de um menino e uma menina adolescentes, que fez a travessia. Ela fala português com forte sotaque espanhol, mas lembra em detalhes o que viveu.
“Foram vários momentos difíceis. O primeiro é o medo”, contou a mulher na pesquisa, nas páginas 60 e 61 do estudo. “Eram bastantes coiotes. Teve uma parte que eu não vi nada, eu tinha um coiote me guiando quando a gente saiu da água, porque eu não queria ver. Eu evitei ver para não ficar em pânico”, relembrou a mulher. “Quando chegou em outra fronteira, eles mandavam a gente ficar calado, porque havia cachorros e os policiais, a gente conseguia escutar os policiais. Foi um risco ainda maior.”
Como essa entrevistada, outras relataram que a sensação de medo é uma constante na vida delas, uma vez que, no geral, não dominam o inglês, têm baixa autoestima e não se identificam com a cultura americana, o que dificulta a integração na sociedade.
Apesar desses obstáculos, as 12 mulheres elogiaram a “qualidade de vida” e os “benefícios financeiros obtidos nos Estados Unidos”, bônus diante de tantas adversidades. “A sensação é de não pertencimento (na sociedade norte-americana)”, afirmou Fabiana. “Quanto maior a percepção sobre os preconceitos sofridos, maior é essa sensação”, acrescentou.
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Para a pesquisadora, o conforto financeiro se sobrepõe às dificuldades e até mesmo ao desejo de ver os parentes que ficaram no Brasil. “Nos relatos, elas falam sobre o quanto ‘dói não poder ir e vir’ e como é difícil não conviver com a família e os amigos sempre longe. Apesar de nenhuma delas ter intenção de voltar a morar no Brasil, todas reclamam de saudade – o sentimento mais citado em todas as entrevistas. Todas choram ao falar da família no Brasil. Algumas reclamam da falta de ‘calor humano’ dos norte-americanos.”
Cuidados especiais em caso de emergência
O imbróglio entre a gestão Donald Trump e a Justiça Federal sobre extinguir ou manter o direito à cidadania para filhos de imigrantes ilegais e turistas sempre foi um fantasma para os brasileiros. No caso das mães brasileiras, antes mesmo de o republicano assumir o poder, elas se precaviam em caso de emergência. Mais exatamente, se forem capturadas e colocadas para a deportação. Os cuidados com os filhos estão em primeiro lugar, portanto, a intenção é deixá-los protegidos e resguardados.
Como o medo da deportação é presente no dia a dia dessas mulheres, muitas mães já deixam um documento pronto, autorizando uma pessoa da confiança delas para que tome conta de seus filhos. “Algumas entrevistadas já tinham tomado essa providência na época da minha pesquisa. Tenho pensado muito em tudo que ouvi delas justamente sobre o pavor da deportação”, ressaltou Fabiana Santos.
De acordo com a pesquisadora, existe uma espécie de “ordem” que predomina entre os brasileiros não documentados: a discrição. Em caso de deportação, simplesmente não se comenta sobre o assunto. “Quando as ameaças de deportação acontecem, as pessoas evitam comentários. A discrição faz parte do pacote do medo que toma conta das famílias não documentadas. Mas há, por exemplo, entidades dando esclarecimentos para os imigrantes ilegais, entre eles o de tomarem providências com relação aos filhos que são norte-americanos.”
Solitários na América
Diferentemente do que o senso comum mostra, os brasileiros não se agrupam nem têm vínculos com outros latinos nos Estados Unidos. Pelo menos foi o relatado pelas entrevistadas nos depoimentos na pesquisa. Em solo norte-americano, os brasileiros não se unem aos demais grupos latinos, por exemplo. A situação piora, caso o brasileiro não documentado consiga ser legalizado.
“O que eu observo aqui, que eu já tive amigos aqui que não tinham documentos e após conseguirem documentos não são meus amigos mais. Acontece muito isso aqui. Se você não tem o status migratório, você não tem um status financeiro, você não consegue se inserir em certos tipos de turma”, contou “Marina”, uma das entrevistadas, na página 86.
O mesmo disse “Denise”, outra mãe brasileira. “O brasileiro antes de ter o documento é de um jeito, depois que tem o documento, ele passa a te menosprezar como se tivesse subido de nível. E me incomoda, claro, eu fico me perguntando será quando eu tiver documento eu vou fazer isso? Mas isso vai da pessoa, ela se acha tão zero que por causa disso ela cresce e acha que é melhor do que o outro.”
Fabiana Santos não se aprofundou na questão, mas ressaltou que as entrevistadas se queixam da falta de apoio da comunidade brasileira.
Brasileiros pelo mundo
Há cerca de 4,5 milhões de brasileiros que vivem no exterior, segundo o Ministério das Relações Exteriores, o Itamaraty, com base em dados de 2023. Os Estados Unidos, com aproximadamente 2 milhões, Portugal, com 360 mil, e o Paraguai, com 254 mil. O levantamento não distingue legais de ilegais. As taxas de emigração costumam ficar em torno de 4%, com poucas variações.
De acordo com esses dados, 194.480 brasileiros emigraram do país entre 2021 e 2022, similar ao período anterior entre 2021 e 2020. Segundo o estudo, a maior taxa ocorreu entre 2012 e 2013, quando 902.487 brasileiros passaram a viver no exterior. Entre 2010 e 2012, a taxa de emigração apresentou sua maior baixa com uma queda de 39%.
Os principais destinos deles são a América do Norte (2.078.170 de brasileiros), a Europa (1.490.745) e a América do Sul (646.730). Os países que mais recebem brasileiros são os EUA (1,9 milhão), Portugal (360 mil) e Paraguai (254 mil).
Recentemente, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez operações de resgate de brasileiros no Oriente Médio, por esse levantamento, até 2023, eram mais de 59 mil vivendo por lá. A maioria morando no Líbano, em Israel, na Palestina e na Síria. Na Ásia, a maior concentração está no Japão com 206 mil, dos 222 mil que vivem neste continente, além de China, Singapura, Taiwan e Coreia do Sul.
Fonte: www.correiobraziliense.com.br
Publicado em: 2025-01-26 03:50:00 | Autor: |