Por Alexandre Teixeira
Fotos: Maialu Ferlauto
Julio Barreto está pintando um muro em sua nova vizinhança, na Zona Sul de São Paulo. Desde novembro, ele mora e trabalha na Vila Nova Caledônia, subdistrito da Cidade Ademar colado ao Brooklin. Antes disso, essa figura histórica do grafite em São Paulo passara cerca de cinco anos na casa de sua mãe – “justamente no lugar, no Alto da Lapa, onde aprendi tudo”. Sua família era vizinha de muro de Alex Vallauri (1949-1987), considerado por muitos o primeiro grafiteiro no Brasil. “Ele era filho da Leia, muito amiga da minha mãe”, explica. Quando criança, Barreto pulava o muro e ia ver Vallauri em seu ateliê, fazendo estampas em tecidos. Em 1978, aos 12 anos, conheceu o spray e a máscara, e começou a grafitar com seu mestre.
Aprendeu também os rudimentos da xilogravura, técnica que desenvolveu ao longo de sua trajetória, retomou por volta de 2016, quando rompeu os tendões dos ombros, e na qual mergulhou de vez a partir de sua volta à Lapa. Ela segue lhe ocupando bastante, mas Barreto começou a deixar sua marca no bairro para onde se mudou depois da morte de sua mãe, sob a forma de grafite – forma de manifestação que ele, na condição de professor de artes gráficas, define como “uma inscrição numa parede pública que não a sua”. Como regra, sem autorização. Enquadram-se nesta definição tanto a pixação quanto o grafite com intenção artística.
Barreto tem uma experiência, já longa, de ensinar. Oficinas, cursos, experiências no Airbnb – onde houver gente disposta a aprender, ele está disposto a ensinar. Seja grafite, seja gravura, seja desenho ou pintura. A demanda por aulas, no entanto, vem caindo. Até porque, com o advento do Youtube, há tutoriais em vídeo para tudo, inclusive para grafite. Que, lembra Barreto, não é a única forma de arte urbana. Há músicos de rua, malabaristas, atores.
Só na Avenida Paulista, num domingo qualquer, há exposições de quadros, gente dançando, representando, encenando peças de teatro, tocando música. “Está acontecendo bastante coisa, é válido, eu super apoio”, diz. Ele, porém, não tem mais grafitado pela cidade. Aos 59 anos, Barreto entende que essa fase passou. Como espectador e observador do que acontece em São Paulo, avalia que Osgemeos mudaram todo o panorama do grafite contemporâneo. “Tem grafiteiros que, nitidamente, foram influenciados por eles”, diz. “Eles mexeram com o mercado de arte.”
Barreto conheceu os irmãos Gustavo e Otávio Pandolfo quando eles estavam começando. Hoje é amigo deles. “Eles trabalham muito. Dou muito valor ao que fazem, fizeram e vão fazer.” Osgemeos estão envolvidos em vários projetos que celebram a cultura hip-hop, incluindo a curadoria para uma mostra que traça a trajetória do movimento de Nova York ao Brasil. “Me chamaram para ter uma pequena participação, porque, na época em que estavam começando, eu, Vallauri, Vado [do Cachimbo], Ozéias [Duarte] e outros, influenciamos o trabalho deles.” Era o que se via nas ruas, bem como os grafites do Tupinãodá, um dos primeiros coletivos de arte urbana no Brasil, formado na década de 1980, e de Rui Amaral. Avançando a partir do trabalho desses pioneiros, Osgemeos têm deixado sua marca no Brasil e no mundo. “Pra mim, são os melhores. Não gosto de 100% do que eles fazem, mas acho que a atitude deles e o estilo deles são sensacionais”, diz Barreto. “Eles dois trabalhando juntos é uma coisa impressionante.”
no Brasil e no mundo. Foto: Instagram osgemeos
“Vamos pichar?”
Desde pequeno, Barreto via Alex Vallauri trabalhando na casa vizinha, mas sua vida mudou mesmo no dia em que o mestre o convidou: “vamos pichar?”. Eles foram. Naquele primeiro dia, saíram de suas casas, subiram uma viela e foram experimentar o spray num muro meio escondido. Dali em diante, volta e meia o convite para pichar se repetia, geralmente nas tardes de domingo. A dupla saía com uma pasta cheia de máscaras (um tipo de molde ou estêncil utilizado para criar desenhos e padrões precisos em superfícies) e uma sacola de feira com os sprays. Pegava um táxi até a Vila Madalena e ia pichando perto da casa dos amigos, numa caminhada até a Avenida Paulista. “Eu perguntava: ‘Alex, por que essas patinhas?’”, lembra Barreto. “Porque ali na frente tem um açougue, e nós vamos colocar um tigre entrando lá”, respondia Vallauri. Era o início da Trajetória Passo a Passo, uma das séries marcantes desse pioneiro do grafite. Outra foi o Canal 27, desenvolvida quando uma numeróloga disse a Vallauri que aquele número lhe traria sorte. Sua criação mais famosa, porém, é a Rainha do Frango Assado.
Barreto acompanhou seu mentor por algum tempo, sempre nos sábados e domingos à tarde – a noite ainda lhe era proibida naquela virada dos anos 70 para os 80. Em 1982, Vallauri muda-se para Nova York, onde cursa artes gráficas no Pratt Institute por um ano. Nesse período, realiza uma série de grafites pela cidade, em pontos incomuns, como Soho, Greenwich Village e Broadway. Barreto vira surfista e começa a deixar sua marca em manilhas de concreto que faziam as vezes de lixeiras nas praias do Litoral Sul paulista. “Eu pichava: ‘Lixo’ e [desenhava] uma mãozinha”, lembra. “Fui fazendo grafites, escondidos, porque era plena ditadura.” Ele conta que foi preso dezenas de vezes por estar grafitando – e nunca ligou para casa pedindo ajuda. Certa manhã, à mesa com a família, seu pai leu no jornal o nome de Barreto entre os grafiteiros detidos numa batida policial. “Por que você não me falou?”, perguntou ele. “Porque estou fazendo uma coisa que não é permitida. É proibida. E não vou encher seu saco às três horas da manhã dizendo que fui preso porque estava pichando muro, né pai?”.
Na maioria das vezes, os policiais o detinham, levavam para a delegacia, davam um chá de cadeira e o soltavam no dia seguinte. Era preciso tirar a válvula do spray, porque muito policial violento, geralmente da Polícia Civil, pichava os jovens detidos. Foi nessa época que Barreto começou a espalhar pela cidade a imagem de um de seus personagens preferidos: o Spirit, um policial dos quadrinhos. Quando era flagrado grafitando-o num muro qualquer, explicava: “Isto é uma crítica que estou fazendo ao sistema, à sociedade, que não paga direito a vocês, que são funcionários públicos, assim como minha mãe”.
Invariavelmente, os policiais achavam legal e relevavam a ilegalidade do ato. Graças a essa lábia, ele não era maltratado. Foi só mais tarde, já nos anos 90, que um flagrante acabou em violência. “Eu estava com um conhecido meu, fazendo um grafite. Veio um vigia noturno e pegou a gente, de revólver na mão. Tomei um cacete. Não podia virar, senão o cara me batia. Passou um carro, e eu falei: ‘meu, chama a polícia, pelo amor de Deus’”, conta Barreto. Cena talvez inédita: um grafiteiro chamando a PM.
Aí chegou a polícia. Fusquinha cinza e branco. Viatura 1605. Desceu um tira grandão. “O que está acontecendo?”, questionou. “Tá acontecendo o seguinte: eu faço grafite. Sei que é proibido. Não sabia que esta loja aqui estava sem o muro. Entramos aqui e pichamos a parede. Fizemos um Charlie Brown”, explicou Barreto. O PM, então, tirou da viatura uma revista Veja. E perguntou: “Quem é você?”. Quando ouviu o nome Julio Barreto, consultou uma reportagem sobre grafiteiros e emendou: “Você que faz aquele cara de paletó e gravata, correndo?”. Ele mesmo.
Reconhecida a “celebridade”, a bronca ficou limitada à invasão da propriedade privada – muito embora o policial já tivesse visto grafites da dupla detida no bairro todo. “É o trabalho da gente”, esclareceu Barreto. “Mas isso é trabalho?”, perguntou o já confuso agente da lei. “É! Dá trabalho fazer a máscara, pensar o lugar em que vamos pichar. Depois a gente vende camiseta, vende pintura e divulga o nosso trabalho dessa forma.” Resultado: foram todos parar na delegacia. No distrito policial, o delegado, que já conhecia os grafiteiros da área, lembrou a Barreto que ele já estava sendo processado por ter sido preso junto com uma turma de pichadores no aniversário de São Paulo. Se quisesse abrir um boletim de ocorrência contra o vigia – que já era reincidente no artigo 129 (ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem) –, não poderia viajar durante o processo. E o agressor seria preso.
Barreto acabou perdoando. Passou dois dias urinando sangue, dada a violência da surra. E levou uma bela bronca de seu pai, por não ter processado o segurança.
Modo de vida ou profissão
Aos poucos, setores da sociedade passam a enxergar o grafite como uma produção artística que merece respeito. E aí começam a surgir convites e contratos para artistas urbanos produzirem obras comissionadas. Para Barreto, foi um processo natural. Quando estava pintando, por exemplo, o Spirit numa parede, tanto passava gente chamando-o de comunista como admiradores perguntando se ele faria algo semelhante em sua garagem. O primeiro trabalho remunerado que Barreto fez foi em parceria com o artista plástico Carlos Matuck, que lhe chamou para ajudá-lo a cortar uma máscara para a Sanduicheria Paulista. Era uma parede curva, para a qual Matuck desenhou um Anhangabaú antigo. A dupla foi ao local fazer uma pintura que remete ao grafite. A partir daí, as encomendas foram aparecendo. Barreto, porém, nunca achou que o grafite seria um modo de vida ou uma profissão.
A brincadeira só tomou um rumo diferente quando ele associou a técnica de Matuck – de fazer grandes figuras, em tamanho natural – com “a loucura do Vallauri”, de sair grafitando pela cidade. “Virei um artista do estêncil, do grafite. Muito mais do que famoso, eu fui competente”, avalia-se Barreto. Talvez seu grande diferencial seja estudar os lugares para escolher as imagens ideais para cada um.
“Eu ganhava dinheiro fazendo recortes para as lojas. Fazendo vitrines. Desenvolvendo estampas a partir de grafites, porque sou um artista visual”, lembra. No desenrolar de sua trajetória, ele foi estudar artes gráficas para trabalhar com ilustração. Seu único erro, avalia, foi não ter se aprimorado na computação gráfica. “Porque hoje em dia, sem computador não se faz nada. E eu sou um homem de livros e pincéis.”
Os artistas visuais urbanos da atualidade, observa Barreto, têm a relativa facilidade de desenhar nas ruas, porque têm tablets ou celulares de onde copiar o que criaram em suas casas ou ateliês. Sem contar com esse recurso quando desenvolveu a maior parte de sua obra, Barreto tornou-se reconhecido por um trabalho sofisticado, com um acabamento bonito. “Minha grande sacada, na verdade, não é a elaboração de desenhos maravilhosos e super pessoais”, afirma.
Foi tomar emprestada uma cena de um quadrinho, como a do Spirit, e pôr na parede. Uma foto de um músico, como Frank Zappa ou Angus Young, e pôr perto da casa de um músico amigo. “Não deixa de ser um trabalho artístico, você pegar uma imagem, passar para um outro suporte, fazer uma releitura e adequá-lo àquela situação urbana”, nota Barreto. “Acho que o meu trabalho despontou por isso: pela sacada de brincar com as pessoas em determinados locais.”
Como agora, ao grafitar um Tarzan num muro discreto na Vila Nova Caledônia. O personagem está descendo de seu cipó praticante na porta da casa onde um vizinho, Rodrigo, prepara e vende marmitas – quase como se chegando em cima da hora para o almoço. Fecha-se, assim, o ciclo aberto naqueles primeiros passeios transgressivos com Alex Vallauri. “Por que essas patinhas? São as pegadas do tigre indo para o açougue.”
Para responder uma pergunta sobre o que acha do grafite hoje, Barreto cita o crítico de artes plásticas Olney Kruse, morto em 2006. “Ele falou uma coisa que me tocou muito, já nos anos 80 ou 90: ‘O grafite virou calça jeans. Todo mundo quer. Todo mundo tem. Todo mundo pode fazer ou pode comprar. Está em todo lugar’.” Ou seja, o grafite popularizou-se. Barreto é um dos artistas que abriram as portas para muita gente boa – e gente não tão boa também. Para ele, o grafite é uma ferramenta que o artista encontra para mostrar aos outros o que sente. “A partir do momento em que sai do ateliê dele para colocar numa parede a imagem de um copo de chope ou de uma caneca de chá, de um frango ou de um telefone, do que quer que seja, ele está se expressando”, afirma. “Para mim, o grafite deve ser visto como manifestação artística, pessoal, para o coletivo.”
E os pichadores? “Também. É importante que se preste atenção no pichador, que é um cidadão desatendido. Que precisa de instrução, que precisa de apoio. Precisa passar mais tempo na escola. Precisa de cursos gratuitos, para que possa dançar, fotografar, trabalhar no teatro, no cinema, na pintura, no grafite”, pondera Barreto. “Tem espaço pra todo mundo. Todo mundo tem que tocar, expor, apresentar, representar.”
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Publicado em: 2025-05-30 15:30:00 | Autor: Alexandre Teixeira |