Parentes de desaparecidos e perseguidos políticos, vítimas da ditadura (1964-1985), comemoraram as três indicações do filme Ainda Estou Aqui ao Oscar. Para eles, o reconhecimento internacional do longa tem o peso político de impedir que o passado seja esquecido e, eventualmente, revisitado. A exemplo da família do deputado cassado Rubens Paiva, retratado no drama, muitos dos que integram a Comissão da Verdade e outras organizações de defesa dos direitos humanos ainda aguardam informações sobre os corpos de seus parentes. O Correio Braziliense conversou com algumas dessas pessoas.
Jessie Jane Vieira de Souza, 75 anos, foi presa durante a ditadura militar. Ela fala pouco desse momento, mas disse que a memória permanece. “Ao ver o filme, vários filmes passaram na minha frente, inclusive o meu próprio.”
Para Diva Soares Santana, 80 anos, que faz parte da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos da Lei 9.140/95 — ao lado de Vera Paiva, filha de Rubens Paiva, e irmã de Marcelo Rubens, autor do livro no qual o filme é baseado —, Ainda Estou Aqui tem o papel fundamental de revelar ao mundo o que representou o governo militar e seus impactos no Brasil nos dias de hoje. Baiana, ela é irmã de Dinaelza Santana Coqueiro e cunhada de Vandick Teidner Pereira Coqueiro, ambos desaparecidos políticos na Guerrilha do Araguaia.
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Leo Alves Vieira, 45 anos, que integra a direção-executiva da Coalizão Brasil Memória Verdade Justiça Reparação e Democracia — que reúne 170 entidades ligadas à defesa dos direitos humanos — , as indicações de Ainda Estou Aqui ao Oscar levarão a uma nova percepção, sobretudo para o Brasil, contribuindo para memória desse capítulo da história brasileira. Carioca, é neto de Mário Alves de Souza Vieira, desaparecido na ditadura militar em 1970. A seguir, os depoimentos ao Correio Braziliense:
Jessie Jane Vieira de Souza — “Estava comentando com os amigos a importância dessas indicações. Não é à toa que foi nomeado para três categorias. É o momento pós-Trump e de ameaça à democracia e ascensão de valores de extrema-direita. O filme traz a história da ditadura para a cena, para os jovens. Uma narrativa, sobretudo da violência do Estado, que atinge a todos, inclusive uma família burguesa. Ali vi vários filmes. Vi meu próprio filme passando pela minha frente”.
Diva Soares Santana — “Desde que vi o filme, parte de mim ficou feliz ao saber que o mundo está tendo conhecimento do que foi a ditadura no Brasil. Mesmo que o filme não mostre, de forma profunda, a questão das mortes e torturas, ajuda na construção da história e da memória. É importantíssimo para todos nós. É uma luta de todos. Mas uma parte de mim ainda sofre e se indigna. Tenho uma irmã que sei quando saiu de casa, mas não sei como morreu. Sei como viveu porque fui atrás e vivi com os camponeses, como ela. Mas meus pais, que se foram, morreram sem saber onde estava o corpo da filha. É uma ferida aberta, não cicatrizada”.
Leo Alves Vieira — “É inegável a amplitude que essa história traz. O Oscar reúne pessoas na casa de bilhões no mundo. É importante para todos, mas, principalmente, para o Brasil. Afinal, vivemos um momento bastante delicado no país. Houve um quase golpe, o que não nos surpreende considerando-se o passado da ditatura. O filme abre uma janela para várias situações. Uma é a divulgação dessa história, num país que não fez memória adequadamente, embora tenha alguns avanços, mas está muito aquém de contar realmente o que houve, nos currículos civis e militares. Ainda há quem chame a ditadura de revolução. O Ainda Estou Aqui para compor essa memória são os efeitos que perduram da violência do Estado. Vai além do desaparecimento de uma pessoa, mas como a família fica impactada. É o trauma da violência de Estado atravessando uma família. O filme deixa muito evidente os momentos de incerteza. Certamente isso aconteceu com minha avó e minha mãe — Dilma Alves e Lucinha”.
Três indicações, três comissões ativas
A história de perseguição política ao longo de mais de duas décadas na ditadura é investigada por três grandes comissões e mais de 170 organizações. As comissões em atividade são de Anistia, sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e a da Verdade. Cada uma foi formada em um ano distinto e tem atribuições diferentes, mas atuam de forma conjunta.
Em 1996, foi criada a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos para apurar, precisamente, o destino dos 416 militantes — capturados, mortos ou desaparecidos. Seis anos depois, veio a Comissão da Anistia, que se dedica a investigar os chamados “crimes de exceção” — todos aqueles que não envolvem mortes nem desaparecidos.
Há, ainda, a Comissão da Verdade, instalada em 2012, para apurar os crimes cometidos de 1946 (fim da ditadura de Getúlio Vargas) a 1988 (que marca a promulgação da nova Constituição, em 5 de outubro). De acordo com conselheiros, há diversas denúncias de perseguições, assassinatos e torturas ocorridos nos chamados períodos democráticos no Brasil.
Personagem central de Ainda Estou Aqui, Eunice Paiva (interpretada no filme por Fernanda Torres) fez parte da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos. No ano de instalação do colegiado, ela obteve a certidão de óbito do marido, o engenheiro e ex-deputado Rubens Paiva.
Números que são pessoas
A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos se debruça sobre dados e informações, ainda sem detalhamento, que aguardam análises. O Correio Braziliense apurou que há, ainda, 80 mil casos em apreciação. Na ditadura militar, pelo menos 50 mil pessoas foram presas nos primeiros meses de 1964. O cálculo é de que 20 mil homens e mulheres foram torturados.
De acordo com a comissão, 7.367 foram acusados e 10.034 atingidos na fase de inquérito, em 707 processos judiciais por crime contra a segurança nacional. Os integrantes da entidade ressaltam que houve numerosas prisões políticas não registradas. Outros 4.862 brasileiros foram cassados e dezenas exilados.
Levantamento da comissão informa que pelo menos 434 militantes morreram ou desapareceram — em 210 casos, os corpos não foram encontrados. Apenas 33 militantes capturados e assassinados tiveram os despojos localizados. A entidade identificou 337 agentes do Estado envolvidos nas prisões, nas sessões de tortura, nos desaparecimentos e nas mortes.
Fonte: www.correiobraziliense.com.br
Publicado em: 2025-01-24 04:55:00 | Autor: |