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Politica

Uma ditadura jamais superada

Uma ditadura jamais superada

Em 25 de agosto de 2014, no Dia do Soldado, o então comandante militar do Sul e hoje senador Hamílton Mourão (Republicanos-RS) complementou a mensagem do comandante do Exército à época, general Enzo Peri, afirmando diante da tropa, em Porto Alegre, que o Brasil tinha muitos inimigos internos — e que não pensassem que os militares não os observavam de perto. A certa altura do discurso, desafiou: “Eles que venham!” A tropa, em uníssono, devolveu num brado só: “Por aqui não entram!”

Mourão assumira o comando do Comando Militar do Sul em 28 de abril de 2014. Foi removido de lá, em 2015, devido a uma homenagem póstuma ao coronel do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra, reconhecido pela Justiça como torturador na ditadura militar.

Em 15 de setembro de 2017, na Loja Maçônica Grande Oriente, em Brasília, Mourão falou claramente — e por três ocasiões — em intervenção militar, ainda por conta da condição política e econômica que levou ao impeachment da então presidente Dilma Rousseff, em 2016.

Para historiadores das Forças Armadas, as manifestações de Mourão são a face visível de uma ditadura que jamais foi superada dentro da caserna. A partir da Nova República, os militares voltaram para os quartéis, mas, conforme apontam pesquisadores, jamais se afastaram da política. E pela razão de que os próprios políticos civis assim não quiseram.

“O problema do intervencionismo militar só será resolvido se grande parte do que foi posto sob a ótica e o controle militar passar a ser, também, colocado sob a ótica civil e o controle civil. O problema só será resolvido se deixar de ser militar ou civil para se tornar nacional. Afirmo que os civis têm se omitido, sistematicamente, em relação aos problemas de organização das Forças Armadas e de defesa nacional. Cito dois exemplos gritantes de omissão: o da comunidade acadêmica e o dos políticos”, anotou o historiador José Murilo de Carvalho em Forças Armadas e política no Brasil.

Conveniências

No mesmo livro, ele aponta que a conveniência política manteve os militares por perto e envolveu-os em questões eleitorais, parlamentares e judiciais. Segundo Carvalho, mesmo com o país redemocratizado, no governo do presidente José Sarney, vários ministérios conduzidos por civis mantinham seus organismos próprios de informação, com militares à frente. A razão disso é que os políticos que controlavam essas pastas queriam não apenas saber do alcance de medidas setoriais que tomavam, mas, principalmente, se adversários paroquiais poderiam delas se beneficiar eleitoralmente — e prejudicar aliados e parentes.

Para o ex-ministro da Justiça (governo Lula II) Tarso Genro, a função dos militares tem de ser repensada. “Temos um mundo cada vez mais fragmentado e cada vez mais ameaçador para a segurança nacional e o regime democrático. Isso vai exigir que se reconsidere qual é a visão de segurança de Estado que temos, qual é o papel das Forças Armadas, qual é a visão de segurança nacional num pacto democrático e como é que se defende não só a soberania popular, mas a soberania territorial. Isso implica em um papel determinado às Forças Armadas, constitucional e livremente pactuado. Produto de uma evolução, inclusive, política que o país vem sofrendo. E que se demonstrou, plenamente, com a repressão ao golpe contra o presidente Lula”, observou, ao Correio.

Segundo Nélson Jobim, ex-ministro da Defesa e ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), não se pode utilizar uma única régua para medir a atuação das Forças Armadas. Sobretudo, quando se considera o 8 de Janeiro um efeito da questão mal-resolvida com os militares, mesmo passados 40 anos da redemocratização.

“(No 8 de Janeiro) o Exército estava pela legalidade. A não ser os que estavam no governo, como agora se fala das articulações na tentativa de golpe de Estado. Atribuo aquilo (a invasão das sedes dos Três Poderes) como uma catarse pela frustração de não terem obtido o resultado que pretendiam, que era a intervenção dos militares para fazer o golpe. A frustração de não terem obtido o que desejavam levou àquela bagunça no dia 8 de janeiro”, avalia, também ao Correio.

Mas há quem considere que a relação entre civis e militares é marcada, também, pelo ressentimento — sobretudo da parte das esquerdas. Como acusou o general Leônidas Pires Gonçalves, primeiro ministro do Exército na retomada democrática, em entrevista concedida a Ronaldo Costa Couto, em 31 de janeiro de 1995, para o livro Memória viva do regime militar — Brasil: 1964-1985.

“Nós, nas Forças Armadas, anistiamos completamente as esquerdas. Elas não nos anistiaram. (…) Por que, não sei, se o comunismo provou-se um embuste, não deu resultado em nenhum país do mundo. Então, por que isso contra nós? É uma questão nacional. Eles ficaram com ódio nosso quando obstamos o passo deles para o poder”, analisou, remetendo ao golpe de 31 de março de 1964.

A confirmação de que a política se manteve presente nos quartéis está no fato de que, na quarta-feira passada, o STF tornou réus os generais da reserva Augusto Heleno, Paulo Sérgio Nogueira e Walter Souza Braga Netto, além do almirante Almir Garnier Santos e do tenente-coronel do Exército Mauro Cid, por arquitetarem um golpe de Estado a partir da derrota do ex-presidente Jair Bolsonaro nas urnas. A politização e o ressentimento são considerados elos entre a tentativa de ruptura democrática, em 2022, e a que depôs João Goulart, em 1964.

Debate

Para debater os efeitos de 21 anos de ditadura militar, o Senado realiza, hoje, uma sessão especial, que reúne pesquisadores, jornalistas e parlamentares para refletir sobre os riscos à democracia e revisitar as lições do passado. O evento terá a participação da historiadora e professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Heloísa Starling, cuja produção acadêmica foi citada pela ministra Cármen Lúcia, do STF, na semana passada, no julgamento dos golpistas.

Ao justificar seu voto, a ministra recorreu à análise da historiadora sobre o golpe de 1964 para frisar como o processo de ruptura democrática é gradual e meticuloso. “A professora Heloísa, no livro A Máquina do golpe — 1964: como foi desmontada a democracia no Brasil, mostra exatamente como não se faz um golpe em um dia. E como o golpe não acaba em uma semana, nem em um mês”, disse. Na sessão do STF, a ministra mostrou que o Brasil foi submetido, ao longo de todo o governo Bolsonaro, a um ambiente de ruído institucional permanente, similar ao que precedeu o golpe de 1964.

 

Fonte: www.correiobraziliense.com.br

Publicado em: 2025-03-31 03:55:00 | Autor: |

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